sexta-feira, 28 de março de 2008

Sobre Vias Vazias e Punhais de Seda


Se Narciso perdeu-se de si mesmo,
Se Ícaro despencou de seu sonho,
Por que eu não haveria de um dia me desprender e me perder?
Não me abismei em um lago raso,
Nem tampouco ameacei os deuses nas alturas,
Apenas, numa certa noite, me extraviei,
numa via expressa da grande urbens
E sem querer, penetrei no insondável.

Quando nossos olhos se encontraram já era tarde, passava das duas horas da manhã no asfalto úmido e irregular da noite fria. Seus outros olhos mecânicos, faróis acesos, iluminavam a avenida. Rasgavam rápido como felinos a via em que, lentos, caminhávamos. Eu não o vi, nem sei quem era, vi apenas o seu olhar, que também não me viu, eu sei, viu apenas os meus breves olhos tristes.
Aquele encontro de olhos, naquele momento ali, naquela hora absurda da noite, era encontro marcado e se buscavam fazia tempo. Era como um encontro de duas lanças pontiagudas e certeiras que se perfuravam mutuamente em busca de redenção. Nossos olhos se chocaram como 2 automóveis rápidos, em alta velocidade, de frente. Duas vítimas no asfalto úmido.
Quando os olhares se encontram, assim, por promessa ou dívida divina, convenciona-se chamar amor à primeira vista. Não sei se era amor, a narrativa aqui fala de um instante apenas. Não importa o que se seguiu depois. Os olhares que se encontraram afinal, flertaram e se prometeram ao eterno e tudo mais, ali, naquele décimo de segundo se congelou. Os carros frearam, as pessoas enrijeceram os passos e seus gestos emudeceram, os bares cerraram as postas, as nuvens cobriram as estrelas curiosas que espiavam do alto, as cortinas vestiram as janelas dos prédios e o vento parou de soprar. Do choque se seguiu, em um nanosegundo, uma espécie de dança de almas. Silêncio profundo no escuro da madrugada solitária. Os quatro olhos bailavam juntos no ar, se perseguindo feito caça e caçador um do outro. Um em cada vértice do quadrado. Eram dois pares de olhos sozinhos na arena vazia que se consolavam, se deleitavam, se aqueciam e penetravam um no outro.
Alguém poderia dizer que houve um coito em via pública de olhos entrecruzados como pernas embaixo de cetim macio. Não sei. Não via nada. Só via um olhar certeiro feito flecha no meu coração.
Quando os olhares se cruzam e um olhar se abre ao outro, e alguém se rende de prazer, pode ser que seja um súbito caso de amor consumado ou apenas um afiado punhal de seda escorregando macio sobre veludo escovado.

Um comentário:

Around The World disse...

Texto lindo, minucioso e perfeito!
so podia vir do meu amigo e admirador Sergio.
Nao pode parar de escrever nao amigo, o texto ta lindo!
Abracos grandes do seu amigo e fa,
Rafinha!