terça-feira, 20 de maio de 2008

Sobre Amores e Tsunamis




As vezes sinto saudades do amor. Sinto falta de amar o amor como diria Barthes.

Amar promove um experiência interior incomparável e única: a de celebrar consigo mesmo, e como consequência com aquele a quem amamos, um desejo incontrolável de expansão da alma e doação de si. Há um prazer enorme que nos invade ao amar. Um mar de sentir e se dar, de se estender para além de si mesmo. Nos sentimos alargados e incomensuravelmente grandes e poderosos. Alguns chamam isso auto-estima, outros segurança e alguns outros de plenitude.

Eu já chamei o amor de afogamento em sentimentos. Como um tsunami que arrasta nossas certezas pro fundo de fora de nossas razões. E é como nos tornassemos crianças novamente... uma inocência perdida se aflora e deixamos de ser racionais e adultos, agimos motivados por impulsos primários e pelo incansável desejo. As vezes nos precipitamos ou somos engolfados por tanto sentimento que já não sabemos mais onde sentí-los ou colocá-los.


Amar, porém, não pode ser sentimento raso, ou amamos com força e ímpeto, nos entregamos e nos afogamos em sentimentos ou então fingimos que é apenas onda passageira que se cria pra não se morrer responsavelmente de tédio ou marasmo existencial na areia da praia. Amor tem que ser com paixão e tesão, tem que ter entrega especial, com cartão de visita e boas intenções, tem que ter passagem sem retorno carimbado no verso, tem que ter café da manhã na cama com beijinhos melados e poemas e no fim do dia, tem que ter dúzias de rosas e jantar a luz de velas, tem que ter praia (e sol) e montanha(e edredon), noites e mais estrelas, alguns haikais sem sentido e muitas risadas gostosas. Tem que ter sofá, mas pode, e deve muitas vezes ser no chão. Tem que ser inesquecível, ficar em relevo escrito na nossa pele, manchado na memória, perpetuado por toda existência. Sim, claro, mesmo que nos provoque saudade ou lamento, mais tarde, um dia!Amor tem que ser aventura, experimentação, loucura: despreendimento. Sei que dá medo, sei que também dói muito sentir assim, mas e daí?quem disse que a alegria é eterna, quem disse que a vida é infinita e quem poderá provar o contrário e dizer que a felicidade mais profunda e "mais perfeita" de todas não é a de amar?Sei que hoje isso pode parecer ilusão romântica ou excesso de idealismo, mas me digam, o que será de nós quando cansados e desesperançados atirarmos a ultima pá de cal sobre nossos sonhos e fantasias?


Quem será enterrado não serão as ilusões ou quimeras amorosas mas o próprio homem e seu espírito.

Fragile!


Existe uma crescente fragilidade nos relacionamentos e uma profunda insegurança nos corações. Afirmação confirmada pelos mais notórios especialistas e pelos mais humildes corações apaixonados. Emocionalmente estamos na gangorra e buscamos, no mínimo, manter o equilíbrio de forças e a satisfação de nossos interesses pessoais. Queremos que a balança se equilibre entre a segurança de um amor tranquilo e a liberdade de vivermos nossas vidas sem interferências. Queremos apertar os laços e se envolver profundamente, mas enquanto amantes ciosos de nossas liberdades, precisamos mantê-los frouxos. Estas duas vontades coabitam, nos confundem e aí nos perguntamos: como achar o ponto médio entre liberdade e relacionamento a dois? Sim, amar e ser amado, mas não ter os vínculos rígidos que um relacionamento sério muitas vezes traz? Exigimos relacionamentos e paixões intensas, mas com baixíssimo grau de cobranças e exigências. Envolver-se, mas manter uma fina camada protetora de individualismo necessário.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Toques em Silêncio


Quem vai me dizer o que sinto toda vez que sou tocado? Quem vai poder traduzir em algum dicionário este verbete? Um toque é algo intraduzível, ou como diriam os poetas INEFÁVEL. Aquilo que palavras não conseguem explicar. Cada centímetro de nosso corpo é uma janela de sentidos: pois a pele sente, cheira, a pele toca, enxerga e se entrega ao outro toque. Ela é uma extensa superfície de magnetismo intenso que percorre todo nosso corpo exposto.
Sentir a carícia ou um toque de algumas pontas de dedos deslizando, bobas a brincar, sobre nossa fina casca protetora, serve-nos de alívio a qualquer peso, angustia ou pressão. Ela é um farol, um porto onde outras naus perdidas, a noite, se atracam, um imenso mar aberto exposto a direção dos ventos de seus dedos, viciada no roçar de outras peles, de outras temperaturas e suores febris. Ela sua, mas também é sorvedouro de meus desejos: com suas redes e ardis captura cada toque para eternizá-los na memória. Quem pode esquecer de longas carícias noite adentro? Espinoza dizia que as zonas erógenas são regiões de memória de nosso corpo infantil. Não é só na mente que carregamos memórias. Nossas peles também.
Locais que foram acariciados num momento preciso e que toda vez que são retocados, lembram e tremem de prazer.
O toque do outro é um sinal de vida, um sopro que acende a chama, pontas de dedo que reanimam a alma, que fazem a respiração acelerar. Na ausência do outro, existe o toque pessoal, a redescoberta do corpo, os minutos lúdicos e sensuais de devaneios físicos, o resgate da auto-estima e a viagem por uma geografia familiar e muitas vezes esquecida. Não se trata de abrir mão do toque alheio, mas de perceber que a gente também pode se amar e muito.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Sobre Vias Vazias e Punhais de Seda


Se Narciso perdeu-se de si mesmo,
Se Ícaro despencou de seu sonho,
Por que eu não haveria de um dia me desprender e me perder?
Não me abismei em um lago raso,
Nem tampouco ameacei os deuses nas alturas,
Apenas, numa certa noite, me extraviei,
numa via expressa da grande urbens
E sem querer, penetrei no insondável.

Quando nossos olhos se encontraram já era tarde, passava das duas horas da manhã no asfalto úmido e irregular da noite fria. Seus outros olhos mecânicos, faróis acesos, iluminavam a avenida. Rasgavam rápido como felinos a via em que, lentos, caminhávamos. Eu não o vi, nem sei quem era, vi apenas o seu olhar, que também não me viu, eu sei, viu apenas os meus breves olhos tristes.
Aquele encontro de olhos, naquele momento ali, naquela hora absurda da noite, era encontro marcado e se buscavam fazia tempo. Era como um encontro de duas lanças pontiagudas e certeiras que se perfuravam mutuamente em busca de redenção. Nossos olhos se chocaram como 2 automóveis rápidos, em alta velocidade, de frente. Duas vítimas no asfalto úmido.
Quando os olhares se encontram, assim, por promessa ou dívida divina, convenciona-se chamar amor à primeira vista. Não sei se era amor, a narrativa aqui fala de um instante apenas. Não importa o que se seguiu depois. Os olhares que se encontraram afinal, flertaram e se prometeram ao eterno e tudo mais, ali, naquele décimo de segundo se congelou. Os carros frearam, as pessoas enrijeceram os passos e seus gestos emudeceram, os bares cerraram as postas, as nuvens cobriram as estrelas curiosas que espiavam do alto, as cortinas vestiram as janelas dos prédios e o vento parou de soprar. Do choque se seguiu, em um nanosegundo, uma espécie de dança de almas. Silêncio profundo no escuro da madrugada solitária. Os quatro olhos bailavam juntos no ar, se perseguindo feito caça e caçador um do outro. Um em cada vértice do quadrado. Eram dois pares de olhos sozinhos na arena vazia que se consolavam, se deleitavam, se aqueciam e penetravam um no outro.
Alguém poderia dizer que houve um coito em via pública de olhos entrecruzados como pernas embaixo de cetim macio. Não sei. Não via nada. Só via um olhar certeiro feito flecha no meu coração.
Quando os olhares se cruzam e um olhar se abre ao outro, e alguém se rende de prazer, pode ser que seja um súbito caso de amor consumado ou apenas um afiado punhal de seda escorregando macio sobre veludo escovado.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Conexões, Muros e Pontes


A tecnologia sempre mudou a forma como o homem olha e percebe o mundo.
A grande revolução veio com o olho mecânico das máquinas que se interpunha entre o homem e a natureza e mudava nossa forma de contemplar o mundo. Depois vieram as telas e os dispositivos digitais. A velha janela hoje fica fechada, devido aos ruídos e ao excesso de intrusão de olhos e ouvidos.
Com o desenvolvimento da tecnologia cada vez mais inventamos objetos e acessórios que por vezes facilitam e até transformam nossa forma de ver o mundo e as pessoas. Hoje vemos muita coisa, mas percebemos pouco ao nosso redor. As coisas não tem permanência e nem lugar.
Na Idade Média, a igreja católica chegou a condenar Galileu pela invenção do telescópio dizendo que ele queria "substituir os bons olhos" que Deus havia dado aos homens por um artefato mecânico. Na verdade a ciência colocava o homem no centro do mundo: como inventor e criador do próprio mundo que existia.
A questão central hoje em dia é o valor que atribuímos as máquinas. Elas podem nos ajudar a viver num mundo melhor, porém nunca substituir a criatividade humana. Hoje em dia parece que há uma crença consensual de que tecnologia e as máquinas podem resolver tudo. As coisas parecem tomar o lugar do homem no comando da vida.
Pode parecer filme de ficção científica, pode parecer uma crítica romântica, mas precisamos restabelecer o lugar dos homens, da natureza e dos sentimentos junto as tecnologias no centro do admirável mundo hi-tech.
Hoje ficou muito fácil falar de afetos. Dificil mesmo é praticá-los. Em um mundo onde as mãos ficam horas movendo mouses, teclando exclamações e dando enter, que mãos e tempo nos restam para estender, tocar e aliviar a solidão do outro?

A internet é um grande espaço de interação, um poderoso suporte de aproximações e uma plataforma de comunicação em rede incrível.

O grande problema é o uso que podemos fazer dela: se vamor abrir portas e lançar pontes ou fechar as janelas e erguer muros.

sábado, 22 de março de 2008

Café da Manhã com Endereço de Entrega...


Reduzimos o sexo, inumeras vezes, ao mínimo denominador comum dos encontros de fim de noite. Colocamos ele como a coroação de um dia desgastande de tédio e trabalho, como válvula de escapes de frustrações e desesperanças.

Ele, talvez, se transformou na própria síntese da carência afetiva transformada em múltiplos e sucessivos encontros, sexo quantitativo e servido e digerido como fast food.

A sedução rápida, e pouco heróica, e o desencantamento depois do gozo, como um incomodo beco sem saída depois da caminhada, se confundem, no final com o nojo ou a culpa reprimida, enquanto a calça e a camisa são abotoadas rapidamente.

Esperamos que os encontros sexuais sejam auto-suficientes e independentes de nossas esperanças de completude. O carinho e o toque ficam reprimidos junto com as palavras não ditas, coagulados no gargalo, presos da garganta e julgamos estar, assim, livres e vivendo o amor-livre.

Sim! livre de carícias, livre de responsabilidades e pernas entrelaçadas. Livres de mãos que se tocam acima dos corpos, livre de toda aura romântica de continuidade. Livre do compromisso de um telefonema, livre de um beijo e um olhar de intimidade. Incapaz de uma massagem final, de alguma sobra de contiguidade, de uma permanencia ou de um café da manhã com sorriso e endereço de entrega.

O sexo hoje é intenso e frágil, patina sob o gelo das superficialidades e a próxima estação é uma incógnita aos amantes celerados que trocam de parceiros, assim como trocam a roupa de cama. Ele é visto como performance e avaliado pelo grau de satisfação que possa nos trazer por si mesmo.

O sexo se tornou elemento de frustração. Se tornou um vício que incita o que deveria curar: a solidão e a falta.

O sexo não precisa do componente amoroso e afetivo de que tanto falam pra existir, mas não pode se desvencilhar da emoção e da entrega, porque somos mais que animais instintivos e sexuais, somos almas humanas em busca também de calor e completude.

Que seja rápido, mas que seja intenso e verdadeiro enquanto dure.

Que seja fortuito, mas que se prolongue na memória afetiva da nossa derma.

Que tenha alma e coração e não seja apenas dois corpos anônimos e um prazer sem nome, endereço ou direção.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Des-Esperar




Amo. Sofro do mal da espera. Sofro de ansiedade crônica.
Espero uma resposta, uma chance, uma volta, um chamado, um contato, uma simples ligação. Digito minha senha e abro meu e-mail.
A simples constatação de que não há, entre as tantas dezenas de e-mails não lidos,
um único de quem tanto espero, me corta a alma e mal consigo me concentrar.
Uma sensação de desamparo me toma. Quem ama (se) DES-espera.
Quem ama é sempre quem sente e pensa a espera do outro.
Como diz Barthes, temos uma cenografia da espera.
Por exemplo, eu diante do telefone.
Com o aparelho de telefone a angústia é maior. Recebemos ordem de não se mexer.
A espera de um telefonema de quem amamos ou de quem conhecemos na noite anterior se
tece de proibições mínimas: nos impedimos de sair da sala, de se afastar do aparelho.
Atendemos todas as ligações como se fossem para nós.
Impedimos até que telefonem para não ocupar a linha.
Ficamos olhando o aparelho como ele fosse falar.
Percebemos suas formas, a poeira entre os vãos, digitais esquecidas... e um silêncio mudo.
Por que não toca e se manifesta e alivia minha espera?
Se ele toca, me desespero, mas finjo normalidade e displicência:
“Quem? ..hã...fala mais alto!!... ah sim, como você está? Que bom que me ligou...
não, não, nem imaginava!”.

Existe uma cenografia, mas também um teatrinho da espera.
Tentem imaginar os antigos que esperavam longos meses por uma simples carta de amor que,
na maioria das vezes, se desviava e raramente chegava ao seu destino.
Mais ou menos como uma mensagem presa dentro de uma garrafa atirada em mar revolto.
Quem a lerá, quem virá ao meu encontro, quem me libertará desta ilha no oceano?
Mas toda espera é longa e melancólica.
Meus minutos de 24 horas cada e cada segundo a mais de eternidade sem fim, me condena
e a ligação ou resposta que não vem pode ser interpretada como dupla possibilidade:
Não recebeu ou não me ama mais...
E aí a dúvida pode perdurar uma vida. E a incerteza é a pior das esperas.
Um adeus a gente sofre e esquece, mas um talvez... talvez!

quinta-feira, 20 de março de 2008

Quereres


Há tantas perguntas sem respostas esperando na fila enquanto a gente foge e se diverte.
Há dezenas de medos pendurados nos cabides do closet,
E ainda ficamos espremendo mais inseguranças no fundo das gavetas
Há inúmeros sobressaltos em cada novo dia de aprendizagem e
Por que ainda nos espantamos com velhas descobertas e antigas lembranças?
Há tanta coisa que queremos tanto saber e mesmo assim ninguém nos conta.
Por que será que há tanto lá fora e aqui, ainda, o que se sente é falta?
Por que será que não percebemos que já temos o suficiente e que mal temos espaço para acumular tantos vazios?
Por que ainda não nos demos conta da corrosiva ansiedade que nos mutila?
Será que vamos nos afogar em números e nos perder em vontades?
O que adianta nos condenarmos pelos excessos se passamos grande parte da vida reverenciando pequenas coisas sem sentido.
Por que será que não vemos que lá, também como aqui, as coisas podem ser fartas e também precárias?
Por que será que não vemos que o aqui é uma extensão de lá, e que em todos os lugares o homem está cercado e cerceado?
Se formos ver, temos em abundância aquilo que tanto buscamos, mas sempre queremos o do outro e muito mais. O desejo nos condena e o réu nunca está satisfeito com os crimes que cometeu.
Cada dia nos descobrimos assim, condenados por alguma coisa inexprimível e imersos num turbilhão de quereres sem ter fim.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Vidas no Plural


Vidas no Plural

Tem horas que o amor, chega numa nau iluminada, durante a madrugada fria e estaciona bem perto de nós. Há momentos que o sentimento invade e faz o aquário esparramar. A janela embaça, o coração palpita e o desejo grita.
Tem horas muito especiais, onde as coisas se conjugam na primeira do plural: Nós...

Vejamos...

Dormir com quem se ama é uma benção, melhor ainda é despertar ao lado desta pessoa. Imaginem a cena: acordo de manhã mais cedo e observo o rosto desprotegido e indefeso da pessoa amada, observo seu corpo desarrumado sobre o lençol.
Me transformo em voyeur e vou vasculhar o rosto de quem tanto amo. A primeira pergunta é por que sou tão privilegiado de estar ali ao lado, deitado junto ao cheiro e ao corpo de quem amo, sentir seu calor e sua pele de manhã bem cedo, antes mesmo que a luz do dia penetre em nossa cama.
Sou um navegador embriagado em busca de sua geografia, do relevo e das saliências (im)perfeitas de seu corpo, das fronteiras e marcas que separam cada detalhe do seu rosto.
Todo amante em sono profundo é uma criança indefesa e um sentimento de plenitude e poder maternal nos invade. O que eu ainda posso descobrir? já conheço tudo, mas me ponho a desvendar como desbravador solitário todas minúcias do seu ser.
Quero desvendar seus mistérios...sim seus pequenos defeitos e segredos.
Como queria penetrar nos seus sonhos, saber por onde anda e que fantasmas o assombra!
Me descubro mais apaixonado e amando cada mínima imperfeição percebida: sua palpebras cerradas, sua sobancelha despenteada e falha, seus labios ressequidos, o cabelo despenteado.
Há uma cicatriz pequena, uma marca antiga de uma catapora, o nariz meio grande demais, uma falha entre os dentes. Amo tudo isso e percebo como tudo é simétrico: os braços amassados embaixo do corpo desajeitado, os pequenos movimentos involuntários, as mãos espremidas embaixo do travesseiro, aquele ronco leve...
Como o meu amor só permite que eu encontre beleza e perfeição em tudo que vejo?
Todas as pequenas falhas prontamente são encobertas e corrigidas e o coração acelera a cada movimento de seu corpo.
Não quero que acorde: "Sim, por favor permaneça aí sobre meu domínio" - penso.
Julgo que a pessoa amada me pertence, ali a observo, e ela está cativa e sob meu domínio agora e para sempre. A felicidade me invade, sinto vontade de acariciá-la mais forte, sentir mais seu calor e beijá-la, mas não posso, resisto.
Enquanto seu sonho durar meu sonho se eterniza.
Ali estou eu, feito criança enquanto a mãe lhe prepara o doce preferido, ali estou eu feito basbaque a amar em silêncio a perfeição que protejo. Eu sou seu, ela também é minha, anjo da guarda.

Ausência Sentida


Ausência


Por muito tempo achei que ausência é falta

E lastimava, ignorante, a falta..

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

Ausência é um estar em mim.

E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços

Que rio e danço e invento exclamações alegres.

Porque a ausência, esta ausência assimilada,

Ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 17 de março de 2008

Sobre Toques e Delícias


Alguns amantes, poderia se dizer, candidatos aos périplos do coração e as maratonas da sorte, combinam que as carícias antecedem as intimidades do sexo, como uma espécie de espera e recompensa, ou rito de passagem, para as peripécias tardias e mais intimas dos lençóis.
Mas naquela noite, ali no quarto branco, somente os toques precederam e prevaleceram, antes mesmo do primeiro beijo.
As vezes saímos pela noite adentro a espera de vencer a solidão e se encantar. Pois é, tudo tem seu tempo e lugar.
Antes do olhar de raspão veio um esbarrar de peles, um entrelaçamento intimamente mínimo, mas necessário para que as duas pupilas se percebessem no meio daquela multidão de olhos e pernas, de decotes, bocas, ombros e orelhas.
Uma festa qualquer, daquela que vamos sem sequer, sem sermos convidados e desinteressados mesmo em conhecer o anfitrião.
Tudo começou assim: um frêmito que se originou de um súbito olhar que nasceu de um despretencioso esbarrão ao primeiro encontro. Um olhar já entediado esbarrava a barra do vestido num outro olhar fugidio e blasé que acendia seu quarto cigarro na noite.
Foi ali "sem querer querendo" que ela ficou, parada alguns dois ou três segundos sentindo sua mão, instante fulminante em que o tecido que lhes cobriam já começava a fumegar e se medissem as temperaturas, iriam perceber que seus corpos ardiam de forma desejante e desejada.
No começo foi assim, depois viria a via crucis do corpo. Seus dedos bobos alisaram seu ombro direito e ela permanecia ali, assombradamente envolvida de corpo inteiro. Uma pele muito branca como de uma deusa talhada em mármore a luz de candelabros e velas era tocada por
uma mão morena, um braço forte de ebano curtido ao sol das 12 horas em algum lugar dos trópicos abaixo da linha do equador.
Um sorriso e um olhar de cumplicidade se seguiram e o contraste sensual do preto no branco,
no bronze no marmore provocaria arrepios e delírios dos mais conservadores, castos e assexuados. Foi questão de segundos para eles se apaixonarem. Foi amor e desejo ao primeiro toque. Esbarrar para se apaixonar.
E logo vieram pequenas palavras soltas ao acaso. Mal se escutavam e um tal de eu bebi vodca demais de um lado, misturado com um não se preocupe porque eu estou adorando do outro e um som de está muito quente aqui dentro e eu tinha pensado a mesma coisa... que não se sabe bem ao certo se eles se comunicavam com palavras e gestos ou sussuros e olhares.
Não se desgrudaram mais, ele a acompanhou para pegar a bolsa com a amiga, segurando e sentindo sua mão delicada. Ela olhava pra trás e retribuía sorrindo em lábios e pensamentos. Saíram e ele disse antes que atravessassem a rua um eu te adorei desde o primeiro instante que minha mão percorreu você.
E este eu te adorei tão sincero pareceu para ela, uma ameaça de encantamento sem volta, um atalho para o rio em busca do mar, um convite para uma vertigem adiada.
Ela percebia uma certa timidez nas suas palavras, que contrastava com seus dedos rápidos vasculhando em silêncio as brechas do seu vestido. Parece que seus corpos não podiam mais esquecer a memória do primeiro encontro e, então, saíram pra ver a noite.
Por descuido ou por malícia das horas, já se fazia dia e raios de luz cruzavam o horizonte. Caminhavam pelas calçadas como se pisassem sobre a areia fina da praia, riam e falavam alto, coisas incompreensíveis que dizemos quando caímos em ancantamento profundo.
Fingiam para si mesmos que o ronco dos motores acelerados dos carros fossem roncos de ondas do mar a invadir e inundar a cidade inteira.
Foi aí que ela sugeriu que eles subissem ao seu apartamento. Antes de cruzar o enorme portão, ele segurou levemente sua mão e parecia dizer em silêncio um "quer ficar comigo pra sempre neste instante" que a vertigem selvagem quase enfraqueceu suas pernas, e ela encantada respondeu em silêncio um efusivo "para agora aqui e todo o sempre...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Sozinha ou solitária?





Vou inventar um nome e um pequeno relato biográfico na terceira pessoa. Muita gente conhece alguém assim. Nossa personagem poderia ter sido retirada de um destes seriados que constroem um retrato familiar atípico. Na verdade as famílias hoje têm os mais diversos tipos de arranjos e formas e parece que em matéria de criatividade poucas formações sociais foram tão longe...

Luiza: 37 anos incompletos, várias vezes "casada" e recentemente mais uma vez separada. Mora só desde os 28, quando saiu da casa das amigas com quem dividia para alçar seu vôo solo. Conheceu Marcos por quem se apaixonou e queria formar família. Ele recebeu proposta de ir morar no Canadá. E lá se foram suas esperanças. Depois de muito desconsolo, Luiza percebeu que não tinham nada a ver e que seu novo cafofo era muito mais aconchegante que imaginava.
Luiza está sempre namorando, mas também sempre se separando.
Não que ela seja uma mulher difícil, não que ela tenha defeitos inconfessáveis ou esteja predestinada a viver só. Talvez Luiza seja uma caricatura bem humorada das mulheres independentes de sua idade. Seus pais são separados. Sua mãe casou de novo, seu pai conheceu uma mulher 10 anos mais nova, mas que dois anos depois perdeu em um atropelamento.
Por ironia do destino, ele também mora só, como Luiza, mas em uma pequena casa alugada em um bairro qualquer da classe média paulistana.

Luiza é arquiteta e trabalha com decoração, adora criar ambientes e projetar sonhos, como ela diz. Seu apartamento é um dois quartos bacaninha, com sala espaçosa e visual clean. No centro, duas poltronas assinadas, encarando uma a outra, uma mesa de centro sólida e espaçosa. Mais ao fundo, alguns pufes de canto coloridos contrastam com as paredes brancas e vazias de imagens, sombras e quadros.

Sobre a enorme mesa se esparramam suas revistas e livros de arte, seus antigos CDs de Jazz, um cinzeiro para as visitas e alguns objetos originários da última viagem.
Na sala ela prefere sentar no chão. Encosta as costas em um seu pufe de estimação e fica folheando as páginas das inúmeras revistas que ganha e assina. As vezes recebe algumas poucas amigas mais próximas ou um ou outro rolo ou namoradinho em que ela confia um pouco mais.

Luiza não é solitária e nem sozinha, mora só por opção e não lamenta ou sofre com isso.
Se isso fosse cem anos atrás, ela seria seriamente estigmatizada, se morasse em alguma pequena cidade, muita gente falaria pelas costas e condenaria seu estilo de vida, mas Luiza mora em um grande centro, em um destes prédios de quatro apartamentos por andar onde mal se conhece o vizinho de porta. Ela é uma estranha para muitos moradores de seu condomínio vertical e sua janela dá para um enorme estacionamento. Nenhuma outra janela indiscreta a espia nas madrugadas adentro.

Seu quarto revela um pouco mais de sua alma. Ali há mais conteúdo e formas, segredos e memórias, gavetas e fotos. Seu quarto é literalmente seu baú. Quando vai ler ou dormir ali, ela fecha a porta para não ser incomodada pelo silêncio e luz do resto da casa. Luz que ela insiste em deixar acesa 24 horas do dia, 30 dias por mês, desde que seu último namorado bebeu demais, a ameaçou e bateu a porta para nunca mais ligar.
O nome dele não nos interessa agora, o curioso foi que ele chegou a se comunicar. Mandou dois emails de desaforo e ainda abriu o jogo: admitiu que a traía constantemente com uma ex.
Luiza naquela noite não dormiu, ficou sob a luz e presença de uma velha luminária que sua vó tinha lhe dado na adolescência. No outro dia acendeu duas velas e rezou. Não era praticante, mas foi educada católica. A luminária do corredor, esta está acesa e estrategicamente posicionada.

Mas voltemos ao seu baú.
É um quarto confortável com vista para o horizonte cinza da cidade. Na janela, muitas vezes se debruça enquanto ouve Ella ou fala no celular. A televisão fica no quarto de dormir, de frente pra cama king size que recentemente comprou. Gente que mora só adora gastar com cuidados e coisas pessoais. Gostam de se sentir valorizados, se presentearem e sentirem que merecem.

Mulheres solteiras morando só são uma população que não cessa de crescer. Talvez as mulheres se sintam melhor e mais adaptadas a casa, talvez não sejam mais tão dependentes de um homem e de um torax protetor, talvez até elas sintam falta de um e escrevam páginas lacrimosas em seu diário, durante aquelas longas noites de vento frio. Talvez... , mas Luiza é uma mulher forte, muito mais esperta e independente que muito homem por aí e prefere a companhia de seu jazz e de sua luminária a solidão entediante de um casamento de aparência.